RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Número Atual: 34 e-34108 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.2024e34108

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Artigo Original

Prevalência e fatores associados com o uso de cigarro eletrônico em estudantes universitários: um estudo transversal

Prevalence and factors associated with e-cigarette use among undergraduate students: a cross-sectional study

Leda Marília Fonseca Lucinda1,2; Gabriela Almeida Mattos2,*; Gabriela Ferreira Paticcié1,*; Iara Ana Pinto Borges2; Isabela Maciel Camarano2; Thamyres Albuquerque Campos Belo Fagundes2; Lucas Coutinho Orellana2; Pedro Ivo Carmo Campos1

1. Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil
2. Faculdade de Medicina de Barbacena, Barbacena, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

Gabriela Ferreira Paticcié
Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais.
E-mail: gabriela.paticcie@estudante.ufjf.br

Recebido em: 11 Novembro 2023.
Aprovado em: 27 Janeiro 2024.
Data de Publicação: 11 Julho 2024.

Editor Associado Responsável: Dr. Nestor Barbosa de Andrade
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia.
Uberlândia/MG, Brasil.
Fontes apoiadoras: Não houve fontes apoiadoras.
Conflito de Interesse: Não há.
Comitê de Ética: Número do Parecer - 5.277.969

Resumo

INTRODUÇÃO: O consumo de cigarros eletrônicos tem aumentado no Brasil.
OBJETIVO: Avaliar a prevalência do uso de cigarros eletrônicos e os fatores associados a seu uso em universitários.
MÉTODOS: Trata-se de um estudo observacional transversal, realizado com universitários de duas instituições privadas de ensino. Foram avaliados os consumos de cigarros eletrônicos, cigarros convencionais, álcool e maconha. Também foram avaliadas as motivações para iniciar o uso do cigarro eletrônico e as percepções dos entrevistados sobre seu uso.
RESULTADOS: 518 acadêmicos foram avaliados, com média de idade de 23±5,7 anos, sendo 64,09% do sexo feminino e 60,42% do curso de medicina. A prevalência de uso de cigarro eletrônico foi de 24,32% e o maior consumo ocorreu no curso de medicina. As principais motivações para iniciar o uso do cigarro eletrônico foram curiosidade (47,70%) e influência de amigos ou familiares (31,61%). O aumento da idade e exercer atividade econômica reduziram a chance do uso de cigarros eletrônicos em 7% e 67%, respectivamente, enquanto a maior renda familiar aumentou a chance de consumo de cigarro eletrônico em 28%. Já o uso do cigarro convencional, do álcool e da maconha aumentou essa chance em 6,4; 11,8 e 3,7 vezes, respectivamente.
CONCLUSÃO: Destaca-se a alta prevalência do uso de cigarros eletrônicos entre universitários. Os principais motivos citados pelos usuários do cigarro eletrônico para iniciar o seu uso foram principalmente curiosidade e influência de amigos e familiares. O consumo de cigarro eletrônico foi associado à idade, renda familiar, atividade econômica e uso de outras substâncias psicoativas. Devido à alta prevalência de uso de cigarros eletrônicos entre universitários brasileiros, faz-se necessário que as instituições de ensino realizem campanhas de conscientização para divulgação ampla dos riscos do do uso de cigarros eletrônicos para a saúde.

Palavras-chave: Vaping; Sistemas eletrônicos de liberação de nicotina; Tabagismo; Estudantes.

 

INTRODUÇÃO

De acordo com o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), mais de 50 doenças estão associadas ao tabagismo, incluindo vários tipos de câncer, doenças dos aparelhos cardiorrespiratório e digestivo, dentre outras enfermidades. Especula-se que em média 157.000 brasileiros morrem por ano de complicações relacionadas ao tabagismo, além disso, indivíduos fumantes adquirem enfermidades com uma frequência duas vezes maior do que os não fumantes1.

O tabagismo foi considerado por muitos anos como uma expressão de modernidade, livre pensamento, charme e sociabilidade; entretanto, atualmente é considerado uma doença crônica e neurocomportamental causada pela dependência de nicotina2. Mesmo comprovados seus malefícios, tal comorbidade se perpetua principalmente entre os jovens. Segundo Ramis et al. (2012)3, em média 35% dos universitários são, ou em algum momento já foram, tabagistas, sendo que 10% alegaram fumar regularmente e 90% dos fumantes começaram o uso antes de ingressarem nas universidades. Esse estudo aponta, ainda, para uma correlação inversa entre o tabagismo e a idade, sendo verificada maior taxa do hábito em estudantes mais jovens, o que pode estar diretamente ligado ao menor conhecimento do efeito do cigarro para a saúde3.

Com a modernidade surgiram diversas formas do hábito de fumar, por exemplo, charuto, narguilé e, o mais atual, o cigarro eletrônico. Esses dispositivos eletrônicos aquecem uma solução contendo um composto psicoativo, mais comumente nicotina ou tetrahidrocanabinol (THC), junto com aromatizantes e outros aditivos que liberam um vapor que os usuários inalam. Os jovens têm apresentado alta adesão ao cigarro eletrônico, sendo vulneráveis aos anúncios de compostos aromatizantes. A propagação de falsas informações leva esse público a idealizar esse dispositivo como melhor opção de fumo, a exemplo das crenças de que cigarros eletrônicos usam apenas vapor de água, não produzem fumo passivo, têm caráter mais limpo, têm permissão para uso em qualquer ambiente, não causam mau hálito, possuem um cheiro agradável, não causam os malefícios estéticos do cigarro convencional e auxiliam na cessação do tabagismo4,5. Entretanto, os riscos pulmonares de vaporização estão emergindo rapidamente, sendo o mais alarmante a lesão pulmonar associada a cigarro eletrônico/vaporização4, cujo termo em inglês "e-cigarette and vaping associated lung injury" é referenciado na literatura pela sigla EVALI.

Choi et al. (2013)6 realizaram um estudo de coorte prospectivo de base populacional sobre compreensão do processo de transição do não fumante para o tabagismo na adolescência. Foi observado que quase 50% dos jovens relataram que os cigarros eletrônicos podem ser menos nocivos à saúde e menos viciantes, tendo esses produtos alto grau de aceitabilidade, sobretudo entre o público jovem/adulto, de acordo com estudos prévios6. Essa percepção dos jovens parece estar associada ao uso das redes sociais e ao consumo de publicidades produzidas por empresas que buscam emitir a ideia de vaporizadores serem menos nocivos à saúde7. No entanto, não são explícitas nesses anúncios as substâncias tóxicas encontradas nos cigarros eletrônicos que já existiam no cigarro convencional, sendo importante ressaltar que esses dispositivos também produzem substâncias tóxicas diferentes, as quais não têm seus efeitos na saúde conhecidos8.

O consumo de cigarros eletrônicos tem sido estudado entre universitários em todo o mundo9-11. No Brasil, foram avaliados estudantes da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) durante o ano de 2015, sendo relatada uma baixa prevalência de usuários de cigarro eletrônico; entretanto, os autores enfatizaram uma crescente preocupação com o possível aumento do uso desses cigarros entre os estudantes12.

Diante do exposto, e devido ao aumento da prevalência do consumo de cigarros eletrônicos entre os jovens9, nossa hipótese é que, em uma população de universitários de instituições privadas de ensino, o perfil econômico dessa população possa ser um facilitador para o aumento na prevalência do uso do cigarro eletrônico. Além disso, existe uma escassez de estudos sobre cigarros eletrônicos na região Sudeste do Brasil, sobretudo no estado de Minas Gerais (MG).

Portanto, o presente estudo teve como objetivo avaliar a prevalência do uso de cigarros eletrônicos e os fatores associados a seu uso em universitários de instituições privadas de ensino superior da cidade de Barbacena/MG.

 

MÉTODOS

Desenho do estudo/População

Foi realizado um estudo observacional transversal entre março e agosto de 2022, o qual avaliou estudantes universitários de duas instituições privadas da cidade de Barbacena, no estado de Minas Gerais.

A amostragem foi realizada por conveniência e foram incluídos todos os estudantes universitários maiores de 18 anos regularmente matriculados em curso superior. Foram excluídos os que não consentiram em participar do estudo ou não estavam presentes durante a aplicação do questionário.

Procedimentos

Após a concordância das instituições de ensino e o consentimento dos coordenadores dos cursos e seus professores, os participantes foram abordados ao início ou final de suas aulas, e no período de intervalo, para que pudessem assinar o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Posteriormente, preencheram o questionário, autoaplicável e anônimo, sobre o status de tabagismo, uso de cigarros convencionais, uso de cigarros eletrônicos, uso de maconha, percepções e motivos para o uso de cigarros eletrônicos.

Após o preenchimento pelo estudante, cada questionário foi depositado em uma urna e foram garantidas pelos pesquisadores responsáveis a privacidade e a confidencialidade dos dados utilizados, sendo preservado integralmente o anonimato dos participantes.

Os dados obtidos não foram utilizados em prejuízo das pessoas e/ou das instituições e serão usados exclusivamente para a finalidade prevista no protocolo; em conformidade com o que prevê os termos da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.

Dados sociodemográficos

O questionário incluiu características sociodemográficas como idade, sexo, exercício de atividade econômica, renda familiar, situação de acomodação (mora sozinho, com familiar ou amigos) e estado civil.

Tabagismo e hábitos de vida social

Os pesquisadores elaboraram o questionário sobre hábitos sociais e tabagismo baseado em estudo prévio de Franks et al. (2017)9 e no documento "Cigarros eletrônicos: o que sabemos? Estudos sobre os Dispositivos Eletrônicos para Fumar elaborado pelo INCA"1.

O questionário abordou questões sobre o status de tabagismo (fumante ou ex-fumante), sobre o consumo de cigarros convencionais (número de dias que usou nos últimos 30 dias) e de cigarros eletrônicos (número de dias que usou nos últimos 30 dias, razões para início do uso, entre outros). Foram abordadas também as percepções e razões para o uso de cigarros eletrônicos pelos acadêmicos, envolvendo a percepção dos fatores que levam ao uso do cigarro eletrônico e expectativas criadas perante outros tipos de fumo, além da correlação de seu uso com outras substâncias psicoativas.

Aspectos éticos

O presente estudo seguiu os princípios éticos da Declaração de Helsinki e foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina de Barbacena com o número de Parecer 5.277.969.

Análise estatística

O padrão de normalidade dos dados foi avaliado pelo teste de Shapiro-Wilk. Os dados normais e os não normais foram expressos em média ± desvio-padrão e mediana (intervalo interquartil), respectivamente. Os dados categóricos foram expressos em porcentagem.

O teste χ2 foi usado para comparar as variáveis entre os cursos e foi realizada análise de regressão logística entre a varável dependente uso de cigarros eletrônicos e as variáveis independentes sexo, idade, trabalho, consumo de cigarro convencional, consumo de álcool e consumo de maconha. Os valores de p<0,05 foram considerados estatisticamente significativos. As análises foram realizadas no programa Stata v. 9.2.

 

RESULTADOS

Ao todo, 518 universitários foram incluídos no estudo, com média de idade 23±5,7 anos para ambos os sexos. A maioria dos discentes eram do sexo feminino (64,09%), solteiros (93,41%) e estudantes do curso de medicina (60,42%). Outras informações sociodemográficas estão descritas na Tabela 1. Dos 518 estudantes entrevistados, 262 (50,57%) responderam que apresentavam hábito de tabagismo (passado ou atual), 11,70% usavam cigarro convencional, 24,32% cigarro eletrônico, 9,26% maconha e 16,60% bebida alcóolica. A maioria respondeu que a frequência de uso mensal de cigarro eletrônico, cigarro convencional e maconha foi menor que 8 dias (Tabela 2).

 

 

 

 

Na Tabela 3, estão descritas as motivações para o uso de cigarro eletrônico entre os acadêmicos usuários desse cigarro. As principais motivações relatadas foram curiosidade (47,70%) e influência de amigos ou familiares (31,61%). Entre aqueles que interromperam o uso, a maioria (44,14%) parou de usar por se preocupar com a saúde.

 

 

Na Tabela 4, estão apresentadas as respostas dos universitários (n=496) sobre as percepções em relação ao cigarro eletrônico. A maioria (77,62%) dos acadêmicos relataram que conheciam esse tipo de cigarro e 16,94% que eles parecem sofisticados ou modernos. Dos universitários avaliados, mais da metade (67,62%) conheceu o cigarro eletrônico por amigos e 35,68% relataram que usariam o cigarro eletrônico se fosse ofertado pelos melhores amigos. A maior parte (71,04%) acredita que o cigarro eletrônico não é efetivo como dispositivo para cessar o hábito do tabagismo e 23,26% acreditam que o usuário do cigarro eletrônico é fumante e o vapor exalado / "fumaça" é nocivo à saúde. Os motivos mais prevalentes relatados pelos estudantes (n=496) para o uso de cigarros eletrônicos foram curiosidade (27,33%), ausência de mau cheiro (26,42%) e facilidade de uso em público (19,60%). Além disso, 42,97% acreditam que o álcool é uma substância que pode estimular seu consumo.

 

 

A Tabela 5 apresenta associação de dados sociodemográficos e do uso de substâncias psicoativas entre os grupos de cursos incluídos no estudo. Ao avaliar seu consumo entre os cursos de medicina, outros da saúde e os não saúde, a prevalência de uso, respectivamente, foi: cigarro convencional (53,45% vs. 41,38% vs. 5,17%; p=0,02), cigarro eletrônico (83,33% vs. 11,90% vs. 4,76%; p<0,001), maconha (62,5% vs. 25,0% vs. 12,5%; p=0,93) e bebida alcóolica (91,86% vs. 4,65% vs. 3,49%; p<0,001).

 

 

A Tabela 6 apresenta dados obtidos pela regressão logística multivariada considerando o uso de cigarros eletrônicos como variável dependente. A análise mostrou que o aumento da idade e exercer uma atividade econômica reduziram a chance do uso de cigarros eletrônicos em 7% e 67%, respectivamente. Por outro lado, a maior renda familiar aumentou a chance do uso de cigarro eletrônico em 28% e o uso de cigarro convencional, álcool e maconha aumentou essa chance em 6,4; 11,8 e 3,7 vezes, respectivamente.

 

 

DISCUSSÃO

No presente estudo, avaliamos a prevalência de uso de cigarros eletrônicos e os fatores associados ao seu consumo, incluindo as percepções e motivações para uso desses dispositivos entre universitários. Observou-se uma alta prevalência de uso de cigarros eletrônicos entre a população estudada maior do que a relatada no estudo de Gonçalves et al. (2022)13, que avaliou 303 estudantes de medicina, dos quais 6,9% consumiam cigarros convencionais e eletrônicos e 4,9% somente cigarros eletrônicos. No Brasil, na Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, foi relatada uma prevalência de uso desses dispositivos eletrônicos de 0,6%, sendo 70% de usuários adolescentes e adultos jovens; além disso, 90% dos usuários eram não tabagistas, ou seja, iniciaram o hábito de fumar através de cigarros eletrônicos14. No presente estudo, os principais motivos para iniciar o uso de cigarros eletrônicos foram curiosidade e influência de amigos ou familiares, de forma similar ao estudo de Gonçalves et al. (2022)13.

Estudo conduzido em um único centro acadêmico de saúde dos Estados Unidos da América (EUA) incluiu 853 universitários de medicina, enfermagem, farmácia, saúde pública entre outros cursos e demonstrou prevalência de 24,2% de uso de cigarro eletrônico entre esses estudantes9, assim como estudos conduzidos na Arábia Saudita e França. Esses estudos também demonstraram números elevados de usuários de cigarros eletrônicos, com prevalência de 23,0% e 21,0%, respectivamente8,11. Apesar de os cigarros eletrônicos serem proibidos no Brasil desde 2009, o presente estudo realizado em instituições privadas de ensino demonstrou alta prevalência (24,32%) de universitários usuários desse dispositivo. Em contraste, Oliveira et al. (2018)12 avaliaram 489 acadêmicos da Universidade Federal do Mato Grosso e demonstraram uma prevalência de consumo de cigarros eletrônicos de apenas 0,61%.

O estudo de Franks et al. (2017)9, que avaliou universitários dos cursos de saúde, demonstrou que o uso de cigarro eletrônico não variou significativamente de acordo com os cursos: enfermagem, medicina, farmácia e saúde pública [24,6%, 22,7%, 21,6% e 20,7% respectivamente (p=0,36)]. Entretanto, em nosso estudo, a maior prevalência de uso do cigarro eletrônico foi entre os estudantes de medicina. Sugere-se que, por apresentarem uma maior renda familiar, eles possam ter a compra e o consumo facilitados, uma vez que o valor médio do cigarro eletrônico é elevado. Esse valor é de aproximadamente 9,80 dólares para os produtos descartáveis e 19,11 dólares para os reutilizáveis15. Além disso, demonstramos que a maior renda familiar aumenta a chance do uso de cigarros eletrônicos em 28%.

Resultados de estudos prévios demonstraram que 91,9% e 99,2% dos universitários tinham conhecimento de cigarros eletrônicos8,9, enquanto neste estudo 77,62% relataram já ter ouvido falar sobre esses cigarros. A maior prevalência de conhecimento nos EUA pode ser devido à comercialização desses produtos que ocorre desde 200716. Em contrapartida, no Brasil, a comercialização, importação e propaganda de qualquer dispositivo eletrônico para fumar foram proibidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), através da Resolução nº 46, de 28 de agosto de 2009. Recentemente, em 2022, a ANVISA manteve a proibição dos cigarros eletrônicos por meio da divulgação do Relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR), cujo objetivo geral foi "Proteger a população dos riscos e agravos associados ao uso dos Dispositivos Eletrônicos para Fumar"14,17. Tal proibição no Brasil poderia ser um fator inibidor de uso; entretanto, os resultados da prevalência de consumo observados no atual estudo são surpreendentes, o que pode estar relacionado ao fato de o uso não ser criminalizado e ser socialmente aceito. Além disso, os universitários do nosso estudo relataram ter adquirido conhecimento do cigarro eletrônico principalmente pelos amigos e pela mídia social, enquanto no estudo conduzido por Franks et al. (2017)9 as fontes mais citadas foram: observar alguém usar cigarro eletrônico (82%), ouvir outras pessoas falarem sobre cigarro eletrônico (75,6%), conhecer pessoas que usam cigarro eletrônico (68,2%)9.

Em relação à motivação para o consumo de cigarros eletrônicos, em um estudo observacional transversal realizado com alunos de graduação de uma grande universidade no sudeste dos EUA, foi relatado que 95,0% dos usuários tinham como motivo mais frequente para iniciar o seu uso a curiosidade, seguida do uso pelos amigos (81,0%), não cheirar mal (77,0%), facilidade de uso (74,0%) e os sabores atrativos (67,0%)7. Na França, as três principais motivações entre os universitários estudados foram cessar o tabagismo, reduzir o consumo de cigarro convencional e o sabor agradável dos cigarros eletrônicos (42,9%, 32,1% e 39,3%, respectivamente)11. No presente estudo, curiosidade e influência de amigos ou familiares foram citadas como principais motivações para o uso. De forma semelhante, em estudo conduzido com uma população de adolescentes, obter cigarros de amigos/família foi associado ao uso de cigarro eletrônico16. Os resultados apresentados por esses estudos sugerem uma importante influência social de familiares e amigos no consumo do cigarro eletrônico.

Observamos pela regressão logística que o uso de cigarros eletrônicos foi associado com a idade, renda familiar, o exercício de atividade econômica, o uso de álcool, de cigarros convencionais e de maconha. No estudo de Tavolacci et al. (2016)11, também foi demonstrada associação entre cigarros eletrônicos e tabagismo, consumo ocasional de maconha, problemas de abuso de álcool e risco de transtornos alimentares. Roys et al. (2020)18 aplicaram o teste de identificação de transtornos por uso de álcool em estudantes universitários e demonstraram que os cigarros eletrônicos associam-se com consumo problemático de álcool.

Segundo Hammig et al. (2017)19, os jovens têm percepção de que os dispositivos eletrônicos são menos prejudiciais e viciantes à saúde do que os cigarros convencionais. Nesse sentido, um importante achado no nosso estudo foi que a minoria dos entrevistados relatou que esses dispositivos causam menos dependência do que os cigarros convencionais e que o cigarro eletrônico é efetivo como dispositivo para cessar o hábito do tabagismo. Além disso, a maioria acredita que esses cigarros são nocivos à saúde. Franks et al. (2017)9 demonstraram que apenas 25,3% dos estudantes da área de saúde concordaram que os cigarros eletrônicos eram uma opção razoável para ajudar a parar de fumar. A maioria não acreditava que os cigarros eletrônicos ofereciam benefícios ou reduziam os danos à saúde em comparação com os cigarros convencionais.

O efeito no longo prazo dos cigarros eletrônicos sobre a saúde permanece incerto e o seu potencial efeito tóxico e carcinogênico parece depender das concentrações e tipos de substâncias contidas no líquido do dispositivo20. De maneira geral, sabe-se que a exposição à nicotina desperta efeitos cardiovasculares importantes como o aumento da frequência cardíaca20. Em 2019, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças americanos reportaram mais de 2.000 casos suspeitos de EVALI, condição associada à inalação das substâncias químicas contidas no líquido do cigarro eletrônico, cujo tratamento hospitalar é baseado em medidas de suporte clínico e ventilatório20,21. Estudos feitos na Califórnia22 e em Hong Kong23, ambos com estudantes adolescentes, demonstraram associação entre a ocorrência de sintomas respiratórios e o uso corrente ou prévio de cigarros eletrônicos, sendo o risco de desenvolver os sintomas diretamente proporcional à frequência do uso do dispositivo22,23.

Estudos prévios com adolescentes de instituições de ensino brasileiras, tanto privadas quanto públicas, já demonstraram uma alta prevalência de consumo de narguilé e cigarros eletrônicos13,24,25. Infelizmente, o conhecimento sobre os malefícios dos cigarros eletrônicos é limitado entre jovens de 18-34 anos, faixa etária de alta prevalência de uso desses dispositivos26. Nosso estudo acrescenta que essa prevalência de consumo de cigarros eletrônicos permanece elevada entre universitários brasileiros, principalmente da área de saúde, provavelmente devido à sua atratividade e à baixa disseminação de conhecimento sobre seus malefícios. Em concordância com nossos resultados, Zhou et al. (2015)27 demonstraram que um número significativo de estudantes de medicina já tinha usado tabaco ou dispositivos eletrônicos para fumar. Nesse estudo, os estudantes relataram pouco conhecimento sobre os efeitos do cigarro eletrônico na saúde, sua epidemiologia e receberam informações e treinamento insuficientes durante a graduação para aconselhamento da cessação do uso de cigarros eletrônicos. Esses resultados destacam a relevância de estudos que abordam esse tema, uma vez que os estudantes e os profissionais de saúde devem compreender as motivações e percepções dos jovens brasileiros sobre o consumo de cigarros eletrônicos, pois eles são extremamente importantes para elaborar e aplicar estratégias efetivas para sua cessação. Além disso, uma ampla divulgação dos malefícios desses dispositivos deve ser preconizada pelas autoridades de saúde e de educação brasileiras.

Apesar da importância de demonstrar a prevalência, as percepções, as motivações e os fatores associados ao uso do cigarro eletrônico entre universitários, o atual estudo apresenta algumas limitações. Por se tratar de um estudo observacional transversal, não podemos inferir causalidade na associação de variáveis, a relação do uso de álcool, maconha e cigarro convencional pode ser bidirecional. O estudo foi baseado em um questionário com questões previamente definidas que pode ter limitado as motivações e percepções sobre os cigarros eletrônicos entre os universitários. Além disso, o estudo foi conduzido em duas instituições de ensino privadas, limitando a generalização dos resultados. Sugere-se que estudos de coorte sejam conduzidos para melhor identificar os potenciais efeitos do cigarro eletrônico na saúde dos universitários.

 

CONCLUSÃO

Apesar de os cigarros eletrônicos serem proibidos no Brasil desde 2009, houve alta prevalência de uso desses cigarros na população estudada. Os motivos citados pelos usuários do cigarro eletrônico para iniciar o seu uso foram principalmente curiosidade e influência de amigos e familiares. Além disso, a maioria dos entrevistados relataram que os cigarros eletrônicos não são eficazes como um dispositivo para parar de fumar e que os usariam se fossem oferecidos por seus melhores amigos. O consumo de cigarro eletrônico foi associado à idade, renda familiar, exercício de atividade econômica e uso de outras substâncias como cigarro convencional, álcool e maconha.

Com o crescimento da utilização de cigarros eletrônicos entre os estudantes universitários brasileiros, torna-se importante que as instituições de ensino superior (IES) conduzam campanhas de conscientização para difundir amplamente os riscos associados ao seu uso para a saúde. Além disso, a partir do entendimento dos fatores associados ao uso desses dispositivos para fumar, é possível implementar políticas de saúde com ações direcionadas para prevenir o início do tabagismo entre adolescentes e jovens adultos.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

As contribuições dos autores estão estruturadas de acordo com a taxonomia (CRediT) descrita abaixo:

Administração do Projeto, análise formal, metodologia, supervisão e escrita - rascunho original e edição: Leda Marília Fonseca Lucinda. Curadoria de Dados, investigação, metodologia, escrita - rascunho original e edição: Gabriela Almeida Mattos; Gabriela Ferreira Paticcié; Iara Ana Pinto Borges; Isabela Maciel Camarano; Thamyres Albuquerque Campos Belo Fagundes; Lucas Coutinho Orellana. Administração do Projeto, análise formal, supervisão: Pedro Ivo Carmo Campos.

 

COPYRIGHT

Copyright© 2021 Lucinda et al. Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Licença Internacional que permite o uso irrestrito, a distribuição e reprodução em qualquer meio desde que o artigo original seja devidamente citado.

 

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